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Revista do Farmacêutico

PUBLICAÇÃO DO CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Nº 122 - JUN-JUL-AGO / 2015

 

Uma revolução ética na saúde

“Algumas vezes, lucro e saúde prosperam muito bem juntos, mas muitas vezes entram em conflito.” Com essa frase, o doutor e livre-docente pela Escola de Comunicação e Artes da USP, palestrante há dez anos no mundo corporativo e consultor, Clóvis de Barros Filho, retrata a base dos conflitos éticos mais significativos na área da saúde. Na entrevista a seguir, um dos mais prestigiados palestrantes sobre ética do mundo, dr. Clóvis aborda a questão sob o ponto de vista da farmácia, mas também do momento em que que o país vive e da saúde como um todo. Leia trechos:

 

 

Revista do FarmacêuticoQual é a melhor forma de definir ética?
Clovis de Barros Filho – A ética é uma destas preocupações teóricas no campo da filosofia que tem por objeto a ação, a conduta, os valores utilizados para julgar o comportamento humano. A ética é uma reflexão sobre as ações livres, sobre tudo aquilo que consideramos certo ou errado.

Assistimos na TV a conflitos, denúncias de corrupção, manifestações. Como o sr. define, à luz da ética, o momento que o nosso país vive?
Vivemos um período de muitos avanços no campo da ética. Lembro-me que na ditadura civil-militar a corrupção nas estatais era muito maior, mais explícita, e só não era discutida por causa da censura e da repressão. As chantagens para obter atendimento ou um serviço de qualidade em bancos, hospitais, escolas, universidades ou nos tribunais era tão descarada que tinha até tabelinha de corrupção divulgada por secretárias e enfermeiras. Quem trabalhou como advogado ou jornalista naquela época se lembra muito bem dessas cenas bizarras. A evolução moral de nossa sociedade atingiu seu ápice ao tratar de esquemas arraigados de corrupção como os da Petrobras, do Metrô em São Paulo ou da Fifa/CBF – a minha geração jamais acreditou que isso um dia iria acontecer.

A ética pessoal é diferente da aplicada ao campo profissional, por exemplo? Resumindo: há ambientes que exigem concessões?
Não digo a ética, mas os valores. Os valores que priorizamos na família são diferentes dos que priorizamos com os amigos e com a nossa profissão. Imagine cobrar de nossos parentes resiliência para aturar críticas e colocar o lucro como principal meta da vida familiar? Seria um absurdo. Imagine se perdoássemos e fossemos complacentes com nossos subordinados da mesma maneira que fazemos com nossos filhos? Haveria problemas sérios de organização e liderança. Afeto, lucro, paciência, eficiência e outros inúmeros valores são importantes, mas precisamos saber quando usá-los nas situações adequadas.

Em 2014, foi aprovada a Lei 13.021/14, que define a farmácia como estabelecimento de saúde. Essa Lei pôs fim a um conflito de duas décadas, na qual tínhamos, de um lado, alguns proprietários de farmácia lutando pela visão simples do comércio de medicamento, e, de outro, o direito do cidadão ao acesso à orientação, atenção e prestação de serviços de saúde para melhoria da qualidade de vida e sucesso do tratamento. O sr. enxerga esse conflito como um problema ético ou são apenas visões diferentes sobre uma atividade?
Esse é um problema ético envolvendo dois valores importantes que estão em conflito. Os proprietários de farmácia lutavam para manter a liberdade de comercialização e a obtenção de lucro, já os consumidores reivindicavam outros valores como o respeito à dignidade humana, o direito à vida e à informação. 

Quais os conflitos éticos mais significativos que o sr. vê na área da saúde?
O conflito essencial reside entre dois valores: a defesa do lucro versus a defesa da vida. Algumas vezes, lucro e saúde prosperam muito bem juntos, mas muitas vezes eles entram em conflito. Salvar uma vida pode se tornar pouco rentável.

Como o sr. enxerga o sistema de saúde brasileiro, público e privado, do ponto de vista da ética?
A medicina privada é uma abominação, pois mostra que nossa sociedade não evoluiu o suficiente para oferecer um serviço público de qualidade. Até os norte-americanos mais liberais perceberam o grande erro de ter privatizado o sistema de saúde. Há grupos de empresários e políticos que lucram muito com toda a desgraça da saúde pública, tanto do ponto de vista econômico quanto da esperança de uma eugenia social. Nunca tinha visto tantos políticos e médicos falando abertamente sobre extermínio de negros, índios e pobres nas redes sociais. A violência da classe médica contra a população carente tem aumentado muito.

Que caminhos trilhar rumo à mudança dessa situação?
Uma revolução ética. O brasileiro precisa entender que a corrupção não é fruto de um partido político, ou de meia dúzia de nomes, mas ela é intrínseca ao próprio sistema midiático e político. Haja visto que não houve uma reforma política de verdade no Congresso. O povo precisa entender que vivemos em uma república, do latim coisa pública. O governo deve ser feito para todos e não para uma pequena classe de privilegiados. Nossa educação, saúde, segurança e prosperidade econômica devem ser estendidas a todos, se tornar público, e cada cidadão deve lutar com todas as suas forças para manter vivo o espírito de solidariedade republicana.
É uma grande mentira dizer que precisamos de políticos melhores para mudar o país. Precisamos de uma população engajada na defesa do serviço público e da extensão da cidadania. Quando trabalhadores e empresários honestos começarem a se mobilizar contra cada escola ou hospital sucateado, contra cada jovem negro inocente morto por bandidos ou policiais, nós teremos capacidade de nos tornar um país de primeiro mundo. Enquanto as pessoas ficam postando calúnias e boatos de políticos na internet, elas deveriam postar todo dia fotos de como estão as escolas dos seus filhos, as ruas e os pronto-socorros e hospitais de seus bairros.


por Mônica Neri

 

 

 

 

 

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