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Revista do Farmacêutico 107
PUBLICAÇÃO DO CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Nº 107 - MAI - JUN - JUL / 2012

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Resistência inexplicável?

Legislações estaduais, municipais e revisão da RDC 44/09 tentam descaracterizar a farmácia como estabelecimento de saúde

 

 RDC 44/09 (arte Ana Laura Azevedo e Renato Marsolla)

O Brasil é uma estrela em ascensão no cenário político e econômico mundial. Porém, um país não faz a transição entre o subdesenvolvimento e um estágio de desenvolvimento que desperte o mínimo de respeito internacional sem se desvincular de algumas nódoas do passado que, impregnadas na cultura nacional, insistem em se manter presentes a despeito dos ventos de mudança.

Um exemplo disso, no caso brasileiro, é a prática da automedicação. Como a cultura é o resultado da dinâmica social, a automedicação no Brasil tem raízes profundas no subdesenvolvimento. A população brasileira, penalizada historicamente pela falta de acesso aos serviços básicos de saúde, encontrou na automedicação uma tentativa de solução para seus problemas de saúde, muitas vezes com resultados sepulcrais.

Dr. Pedro Menegasso (Foto: Renata Gonçalez)
Dr. Pedro Menegasso defendeu a permanência dos MIPs para dentro do balcão durante audiência pública em Brasília (Foto: Renata Gonçalez)

Hoje, com a implantação do SUS e dos planos privados de saúde, a situação, ainda que esteja longe de ser ideal, melhorou. Com a ampliação do acesso aos serviços de saúde, cabem às diversas instâncias de governo contribuir para mudar a cultura da automedicação no Brasil.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, um dos órgãos governamentais que deveria ter forte atuação nesse sentido, ao publicar a RDC 41/12, no dia 27 de julho, tomou uma decisão que vai exatamente em direção contrária. A nova RDC altera a 44/09, em especial o parágrafo 2º do artigo 40 e, libera novamente os medicamentos isentos de prescrição para a venda no autosserviço de farmácias e drogarias. Uma volta ao passado que seguramente estimulará ainda mais a cultura de automedicação do brasileiro.

Medicamentos em gôndolas (Foto: Thais Noronha / arquivo)
Medicamentos isentos de prescrição ao alcance da população: estímulo à automedicação e possíveis consequências graves à saude (Foto: Thais Noronha / arquivo)

Dezenas de municípios por todo o país e estados publicaram recentemente legislações que permitem os MIPs no autosserviço e até pior, autorizam que farmácais vendam toda sorte de produtos, de bebidas a cigarros. O que está por trás disso? Por que tanta resistência para que a farmácia seja um verdadeiro estabelecimento de saúde?

MIPs

 Dois fatores chamam a atenção na decisão da Anvisa em colocar os MIPs novamente no autosserviço das farmácias e drogarias: os motivos principais apontados pela Agência são os mesmos defendidos pelo comércio e pela indústria de medicamentos e, a volta ao passado é revestida com discurso de modernidade, comparando o nível de formação educacional e acesso à informação do povo brasileiro com o dos países mais desenvolvidos do mundo.

Em defesa da volta dos MIPs às gôndolas, a Anvisa alega utilizar uma pesquisa do comércio varejista e diz que, com os MIPs ‘atrás do balcão’, o preço médio deste perfil de medicamento aumentou, ou seja, as farmácias empurram para o paciente o medicamento mais caro. “É um argumento estranho”, diz o dr. Pedro Menegasso, presidente do CRF-SP. “Se está havendo mais venda com os MIPs atrás do balcão, por que defendem a volta do autosserviço? Os proprietários de farmácias querem ganhar menos?”. Além disso os consumidores procuram os medicamentos por seu efeito e os produtos possuem composições diferentes, não sendo possível a comparação de preços.

A Anvisa argumenta ainda que a retirada dos medicamentos de venda livre das gôndolas aprofundou a assimetria entre o usuário e o estabelecimento farmacêutico, porque o consumidor ficou alijado de qualquer possibilidade de escolha. Essa preocupação não parece ter sido registrada na própria consulta pública aberta pela Anvisa sobre a mudança da RDC 44/09. Mais de 70% das 152 manifestações registradas durante os 30 dias em que a consulta pública ficou aberta foram contrárias ao retorno dos MIPs ao autosserviço, como querem os donos de farmácia e alguns representantes da indústria farmacêutica.

Carrinho com medicamentos (Foto: Vichaya Kiatying-Angsulee / Panthermedia)
Os medicamentos não são mercadoria qualquer para estarem nas gôndolas à disposição de todos (Foto: Vichaya Kiatying-Angsulee / Panthermedia)

A Agência também procura fazer comparações com países como Estados Unidos e Inglaterra, onde prevalece o conceito de liberdade com informação, ou seja, desde que o paciente tenha informação adequada, ele pode exercer a automedicação. Porém, a formação educacional do brasileiro, infelizmente, ainda está muito distante do nível desses países, sem contar que lá todos medicamentos contêm bula, enquanto no Brasil, boa parte dos MIPs é vendida em blisters e sem bula.

Mas a Anvisa também apresenta argumentos técnicos para a mudança. Segundo informações da Agência, desde quando os MIPs foram para trás do balcão, o Sistema Nacional de Informações Tóxico Farmacológicas (Sintox) não indicou nenhuma queda na quantidade de intoxicações por medicamentos registrada no país.

“Outro argumento estranho”, diz dr. Menegasso. “Se o uso de um MIP mascarar o sintoma de uma doença, aparece no índice de intoxicação? E se o uso de um MIP fizer o paciente adiar o uso de um medicamento específico, agravando uma doença, ou se um MIP interagir com outro medicamento do qual o paciente necessita, diminuindo o seu efeito e permitindo o avanço da doença, aparecerá no índice de intoxicação?” 

Em nome da saúde

Farmácias mantêm postura de estabelecimento de saúde e optam por deixar os medicamentos isentos de prescrição fora do alcance da população

Dra. Rosenilda Tarlei (Foto: Arquivo Pessoal)
Dra. Rosenilda não mudou seu posicionamento apesar da RDC (Foto: arquivo pessoal)

Em meio à discussão sobre a disposição dos MIPs para fora do balcão, muitas farmácias paulistas, apesar de uma lei aprovada no Estado permitir a disposição desses medicamentos no autosserviço, os mantêm atrás do balcão.

A Revista do Farmacêutico ouviu profissionais que estão à frente de drogarias e que mantiveram os medicamentos fora do alcance do consumidor, justamente por entenderem a importância da orientação do farmacêutico.

Sócia-responsável da Drogaria Popular, em Atibaia (SP), dra. Maria Luzia Bondança focou na saúde ao manter sua postura. “Na minha drogaria os MIPs estão fora do alcance do consumidor e não pretendo mudar isso, apesar da RDC da Anvisa permitir. Os pacientes já se acostumaram a pedir orientação, perguntam sobre o risco de interação. É uma facilidade a mais para que eu possa informá-los e por conta disso não mudarei meu posicionamento”.

Dr. Tilson orientando os pacientes (Foto: Arquivo Pessoal)
Dr. Tilson destaca que pacientes buscam orientação (Foto: arquivo pessoal)

Responsável Técnica (RT) pela Drogaria Drogona em Ferraz de Vasconcelos (SP), dra. Rosenilda Tarlei, mantém os MIPs atrás do balcão desde 2009 e não mudará seu posicionamento. Segundo a farmacêutica, a decisão é a melhor forma de assegurar a assistência farmacêutica e evitar problemas ao paciente e ao farmacêutico. “É melhor para a segurança de todos. Muitas vezes as pessoas desconhecem a hepatoxicidade do paracetamol, por exemplo”. Ela destaca também o efeito psicológico dos medicamentos. “Muitos nem sentem dor, mas se sentem bem ao tomar o medicamento. Nosso papel é o de pensar na saúde pública”.

Dr. Tilson Kazumi Obata, RT pela Isa Farma na Vl. Zelina em São Paulo [diferente do publicado na versão impressa, em que foi dito que a farmácia ficaria em Santo André], também optou por manter os MIPs fora do alcance do paciente. “É comum, no momento da dispensação, que os pacientes perguntem quanto a posologia e outras questões técnicas do medicamento. Dessa forma, podemos corrigir e orientar para não haver consequências à saúde”.

Mais ataques

 Desde que entrou em vigor, a RDC 44/09, que foi um passo importante no sentido de tentar fortalecer a farmácia como estabelecimento de saúde e de estabelecer mecanismos que contribuíssem para a redução da cultura da automedicação, vem sendo atacada por vários setores.

Pres. Dilma Rousseff (Foto: Wilson Dias / Agência Brasil)
A presidenta Dilma vetou o item da MP que permitia a venda de MIPs em supermercados: “Seria estímulo à automedicação” (Foto: Wilson Dias / Agência Brasil)

Ainda em maio deste ano, a venda de medicamentos em supermercados, armazéns e lojas de conveniência correu sério risco de ser aprovada. O tema foi incluído pelo deputado Sandro Mabel (DEM/GO), na Medida Provisória 549/11, que tinha como objetivo a redução da carga tributária de produtos destinados a portadores de deficiência física. Inserido na MP de forma obscura, o artigo foi aprovado junto com a MP pela Câmara e pelo Senado e chegou às mãos da presidenta Dilma Rousseff, que sabiamente o vetou.

No argumento pelo veto, a presidenta alegou que “a proposta poderia estimular a automedicação e o uso indiscriminado, o que seria prejudicial à saúde pública”. Os ministérios da Saúde e da Justiça opinaram a favor do veto. 

Nesse contexto, a publicação da RDC 41/12 é controverso com o posicionamento do próprio governo.

Até o setor de comércio varejista de medicamentos, que também defende a “flexibilização” da RDC 44/09, ficou incomodado com a possível aprovação da venda de medicamentos em supermercados. O presidente da Associação Brasileira de Redes de Farmácias, Abrafarma, Sérgio Mena Barreto, veio a público manifestar apoio ao veto da presidenta Dilma. Para Mena Barreto, “a venda de medicamentos em supermercados pode até ser um dia aprovada, mas somente após amplo debate com a sociedade e não na forma de um artigo inserido numa MP”.

Mas a aversão à RDC 44/09 também se manifesta em outros níveis, como na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que aprovou este ano legislação que permite às farmácias e drogarias colocarem os MIPs no autosserviço. A lei foi vetada pelo governador e médico Geraldo Alckmin, mas o veto do governador foi derrubado pelos deputados estaduais paulistas.

Interessante que, mesmo após a aprovação da lei no Estado de São Paulo, uma parte das farmácias e drogarias do Estado mantiveram os MIPs atrás do balcão (veja box acima).

Crítica aos farmacêuticos

Gov. Geraldo Alckmin (Foto: Divulgação / Governo do Estado de Minas Gerais)
Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin vetou a legislação que autoriza os MIPs no autosserviço, mas deputados estaduais derrubaram o veto (Foto: Divulgação / Governo do Estado de Minas Gerais)

Entre as justificas da Anvisa para a revisão da RDC 44/09 há uma crítica direta aos farmacêuticos. Segundo a Agência, mesmo com o farmacêutico presente na farmácia, muitas vezes o medicamento é dispensado por um balconista sem a devida orientação. É inegável que o problema existe, mas, para o dr. Menegasso, problemas assim não justificam a volta ao passado. “Mudanças culturais e comportamentais levam tempo para ocorrer e há necessidade de mudarmos a cultura da automedicação. Em São Paulo, mesmo com a lei aprovada pela Assembleia Legislativa, grande parte das drogarias manteve os MIPs atrás do balcão pela convicção de que a farmácia é um estabelecimento de saúde e isso se deu pela ação dos farmacêuticos comprometidos com a saúde dos pacientes. É essa postura que deve ser incentivada, não a mudança da norma”, aponta.

Os dados obtidos pela fiscalização do CRF-SP no Estado de São Paulo conflitam com os divulgados pela Anvisa e se comptrapõem a essa crítica. Levantamento realizado pela equipe de fiscalização do CRF-SP, em junho de 2012, com 638 farmacêuticos paulistas, apontou que 70% deles perceberam alteração no comportamento dos usuários após a entrada em vigor da RDC 44/09. Segundo os farmacêuticos ouvidos, muitos pacientes passaram a adquirir apenas os medicamentos que de fato necessitavam.

Esse dado singelo talvez seja o que efetivamente explique porque a RDC 44/09 incomoda tanta gente.


Não é biscoito

CRF-SP lança campanha para conscientizar a população e valorizar farmacêutico. Ação faz sucesso instantâneo na internet. Ajude a divulgar!

Remédio não é biscoito (Arte: Remat)

O CRF-SP lançou em agosto uma nova campanha publicitária que busca mostrar à população a importância e valor do farmacêutico. A campanha traz novas peças mas mantém linha de comunicação semelhante a ação iniciada em janeiro: “Na farmácia exija o Farmacêutico – o profissional de saúde mais próximo de você”.

Dessa vez, em uma das peças  há a comparação de medicamento e biscoitos com a seguinte mensagem: “Remédio não é biscoito – na hora de comprar medicamento não conte com a sorte, consulte o farmacêutico”.

Em outra, a mensagem diz que farmácia não é supermercado e que o farmacêutico e o profissional capacitado para orientar o paciente. Um terceira peça publicitária sugere que palpite de amigo não é opinião de profissional e que o melhor a fazer antes de comprar qualquer medicamento é falar com o farmacêutico.

A campanha foi iniciada com uma publicação na Folha de S. Paulo alertando aos farmacêuticos que os MIPs, apesar da mudança na RDC 44/09, deveriam ser mantidos atrás do balcão. O CRF-SP também enviou ofício a todos os farmacêuticos paulistas alertando que o MIPs deveriam permanecer fora do autosserviço em farmácias e drogarias, como forma de fortalecer a assistência farmacêutica e valorizar o farmacêutico.

Sucesso instantâneo

 A campanha, que foi lançada em primeira mão nas mídias sociais, fez sucesso instantâneo. Em menos de uma semana, só na página do CRF-SP no Facebook foram mais de 10 mil visualizações com quase 3 mil compartilhamentos, ou seja, pessoas que repassaram as peças publicitárias para seus grupos de relacionamento criando um efeito de multiplicação conhecido com marketing viral, que deve ter atingido no mínimo cerca de cem mil pessoas.

Novas peças com o mesmo teor, mas com mensagens adaptadas, serão incluídas em outros veículos de comunicação do Estado de São Paulo durante o segundo semestre deste ano.

As peças publicitárias estão à disposição dos farmacêuticos no portal do CRF-SP. Participe. Ajude a divulgar ainda mais a campanha.

 Remédio não é biscoito (Arte: Remat)   rf107_capa_dica_arte-remat

 

 

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