Revista 108 - Capa

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PUBLICAÇÃO DO CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Nº 108 - AGO - SET - OUT / 2012

Revista 108 setinha Capa

 

Dispensação de medicamento com receita (Foto: Lilo Claretto / Agência Luz)

Será que é pra valer?

Anvisa quer discutir com entidades do setor farmacêutico estratégias para que a legislação sobre dispensação de medicamentos de venda sob prescrição passe, de fato, a valer

Para o CRF-SP, a adoção da prescrição farmacêutica faz parte da solução

Conta-se uma história curiosa quando da chegada das montadoras japonesas no Brasil em meados dos anos 90. Seguindo a cultura nipônica, uma dessas empresas colocou no quadro de avisos várias regras de comportamento que deveriam ser seguidas à risca pelos funcionários. E, para espanto e desespero dos japoneses, as regras não eram cumpridas! Estavam ali, publicadas, assinadas pelo diretor de RH, e não eram cumpridas. Como isso era possível?

Explica daqui, conversa dali, e os japoneses entenderam que no Brasil não é bem assim. Por aqui, o fato de uma autoridade publicar uma norma não significa que ela será cumprida. Depende da norma, da autoridade, da fiscalização, do tipo de punição, são muitas as variáveis. A empresa decidiu então chamar todos os líderes de turma, que passaram a ter a obrigação de alertar verbalmente aos funcionários que as normas publicadas nos quadros de aviso eram para valer e, quem não as cumprisse, seria punido. Resolveu.

É algo semelhante a isso que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pretende fazer em relação à venda de medicamentos sob prescrição médica, que apresentam tarja vermelha, e que hoje são comercializados em todo o país pelas drogarias como se fossem medicamentos isentos de prescrição. A Agência começou a avisar que existe uma lei (6.437/77) sobre dispensação de tarjados e que ela deve ser cumprida. Não existe ainda, por parte da Anvisa, previsão para a adoção de qualquer medida punitiva, mas isso não significa que o quadro não possa mudar.

Uma mudança visível de postura da Anvisa sobre o tema ocorreu no último dia 27 de setembro, quando a Agência realizou uma audiência pública justamente para ouvir representantes da área farmacêutica, de defesa do consumidor e a sociedade sobre alternativas para evitar que os medicamentos continuem a ser dispensados sem receituário. Nessa audiência, várias entidades tiveram a possibilidade de se manifestar sobre o tema e isso mostrou as diferentes visões e interesses que existem.

Na audiência, a Anvisa também informou que publicaria, até o final de outubro, um edital definindo regras para formação de um grupo de trabalho. A ideia da Agência é que as entidades interessadas em discutir o tema se credenciem para participar desse grupo, que discutirá formas para viabilizar que a dispensação de tarjados no Brasil somente ocorra, de fato, mediante a apresentação da receita. (Até o fechamento desta edição, a Anvisa não havia publicado o edital).

A Agência sabe que está diante de um tema complexo, multifacetado e que dificilmente surgirá, das discussões, uma única proposta que atenda e agrade a todos os interesses envolvidos. O foco, diz a Agência, será a saúde do paciente.

"Não queremos apenas obrigar o cumprimento de uma lei ou criar burocracia. Não estamos preocupados com o preenchimento de um papel de receituário. Queremos colocar a questão da saúde do paciente em primeiro plano e, dentro da realidade do país e da mudança que queremos no patamar da qualidade da dispensação, encontrar soluções que minimizem ou acabem com o problema", explicou o dr. Dirceu Barbano, presidente da Anvisa.

O presidente da Anvisa, dr. Dirceu Barbano, ressaltou anecessidade de adequar a situação à realidade do país (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)
O presidente da Anvisa, dr. Dirceu Barbano, ressaltou anecessidade de adequar a situação à realidade do país (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)

Visões conflitantes

O tamanho do desafio da Anvisa em fazer valer a lei 6.437/77, que definiu como infração sanitária a dispensação de medicamentos prescritos sem o devido receituário médico, ficou claro durante a audiência pública. Para algumas entidades, só o fato de se discutir critérios para o cumprimento da lei dos tarjados já denota falta de espírito público. "A proposta da audiência é contra a posição da presidente Dilma, que é a de amparar os mais pobres e humildes. Essa exigência é norma nos países mais desenvolvidos, mas a realidade no Brasil é diferente", indignou-se o residente da ABCFarma, Pedro Zidoi, durante a audiência.

A entidade por ele presidida defende que é preciso estruturar (entenda-se ampliar) a relação de medicamentos isentos de prescrição e criar mais duas categorias de medicamentos: os que não podem ser vendidos em gôndolas e os que somente podem ser vendidos sob orientação do farmacêutico.

"Em Minas Gerais, 455 municípios não têm médico em sua estrutura de saúde. No Brasil, 30% dos municípios não têm hospital público", disse o deputado Federal Antonio Roberto (PV/MG), preocupado com a implantação de novas exigências.

Na realidade, o argumento é absolutamente questionável, uma vez que não adianta criar um problema para resolver outro. Se há municípios no país que não contam com a presença de médicos, a solução passa pela contratação desses profissionais, e não pelo fornecimento de medicamentos sem critérios, o que ao invés de solucionar um problema, pode causar outro ainda maior.

Problema multifacetado

Há uma série de questões que devem ser consideradas. Uma delas é quanto aos medicamentos de uso contínuo, como os anti-hipertensivos, por exemplo. Deve-se pensar em um prazo de validade para a receita médica, considerando que o paciente estável (com a pressão arterial controlada) não precisa retornar ao médico mensalmente. Mas também não faz sentido interromper o tratamento por falta de uma receita atualizada, o que certamente é mais prejudicial a sua saúde do que seguir com o consumo.

Há outra categoria de medicamentos, como os anticoncepcionais, que também apresentam uma situação complexa. Não convém que sejam utilizados sem orientação médica, mas, da mesma forma que os anti-hipertensivos, é importante que a receita tenha um prazo de validade estendido, visto que as mulheres que não apresentam nenhum problema de saúde retornam ao ginecologista a cada seis meses ou um ano. Ou seja, não faz sentido e não existe estrutura no país para que a paciente retorne mensalmente ao médico para obtenção de receita de anticoncepcional. A pílula do dia seguinte, medicamento que também requer prescrição, não pode esperar uma semana ou mais por um receituário médico para ser dispensada.

Outro problema existente no Brasil refere-se às apresentações comerciais dos medicamentos que, muitas vezes, não coincidem com a necessidade do tratamento prescrito. A quantidade de medicamento contido em cada embalagem é determinada pela indústria detentora do registro e não pelo interesse sanitário.

É necessário que a Anvisa estabeleça regras claras sobre isso para que o paciente que necessita utilizar 30 comprimidos de um determinado produto não seja obrigado a comprar duas caixas com 28 para fazer o tratamento completo. Esse problema é perceptível em relação aos antibióticos, para os quais foi criada uma norma que obriga a retenção da receita com o objetivo de diminuir o uso indiscriminado e a automedicação. Porém, quando o paciente tem de adquirir uma quantidade maior do que precisa, pois não existe apresentação que atenda às necessidades do tratamento, isso gera sobra e, inevitavelmente, ele utilizará esse produto sem prévio diagnóstico médico quando sentir sintomas semelhantes e acreditar que foi acometido pela mesma patologia. Ou seja, o problema da automedicação não foi totalmente solucionado com a norma.

Dr. Marcos Machado: o farmacêuticotem de ser visto como parte da soluçãodo problema (Foto: Chico Ferreira / Agência Luz)
Dr. Marcos Machado: o farmacêuticotem de ser visto como parte da soluçãodo problema (Foto: Chico Ferreira / Agência Luz)

Como se vê, são questões complexas que demandam soluções criteriosas, buscando-se o equilíbrio entre a preservação da saúde do paciente, mas que ao mesmo tempo, não prejudiquem o acesso a medicamentos importantes.

Prescrição farmacêutica

Diante do cenário, o diretor do CRF-SP dr. Marcos Machado considera que o farmacêutico deve ser incluído como peça importante na solução do problema. "Não é de agora que defendemos que a farmácia é um estabelecimento de saúde e, se assim ela for entendida, será fundamental para resolver o problema de dispensação no país. O farmacêutico tem capacidade para avaliar quando a prescrição é necessária e as situações em que podem ocorrer a dispensação de medicamentos para tratamento de transtornos menores sem a apresentação da receita".

Para o diretor do CRF-SP, é necessário uma revisão total dos critérios de definição dos medicamentos que demandam prescrição médica e, a partir disso, deve ser criada uma nova classe de medicamentos, a de prescrição farmacêutica.

Para a dra. Maria José Calera, o farmacêutico que se propõe a atuar com a indicação deve estar preparado (Foto: Chico Ferreira / Agência Luz)
Para a dra. Maria José Calera, o farmacêutico que se propõe a atuar com a indicação deve estar preparado (Foto: Chico Ferreira / Agência Luz)

Mas a coisa não é tão simples assim. Em junho deste ano, o CRF-SP promoveu o 1º Seminário Internacional de Indicação Farmacêutica, que contou com a presença da farmacêutica e professora da Universidade de Sevilha (Espanha), dra. Maria José Martín Calera, autora de diversas publicações na área farmacêutica, mestre em Atenção Farmacêutica pela Universidade de Minnesota (EUA) e doutora em Farmacologia pela Universidade de Sevilha (Espanha). Na ocasião, ela apresentou a situação da Espanha, onde o serviço de indicação farmacêutica já é realidade e fez um importante alerta: "Se farmacêuticos assumirem a responsabilidade de indicar, haverá melhora sobre a saúde. Os tratamentos disponíveis no sistema de saúde pública, em conjunto com o serviço de indicação farmacêutica, aumentarão a excelência nos atendimentos dos pacientes. Mas o farmacêutico que se propõe a atuar com indicação, deve se preparar para isso".

Para o dr. Pedro Menegasso, a discussão sobre os medicamentos de venda sob prescrição abre uma oportunidade imensa para o fortalecimento da profissão (Foto: Chico Ferreira / Agência Luz
Para o dr. Pedro Menegasso, a discussão sobre os medicamentos de venda sob prescrição abre uma oportunidade imensa para o fortalecimento da profissão (Foto: Chico Ferreira / Agência Luz)

Para o presidente do CRF-SP, dr. Pedro Menegasso, muitas vezes, quando a entidade insiste que o farmacêutico tem de assumir uma postura proativa dentro da farmácia, que deve chamar a responsabilidade para si, exercer, de fato, a assistência farmacêutica e se qualificar adequadamente, ela se torna alvo de críticas por parte de alguns farmacêuticos. "Alguns colegas de profissão, infelizmente, acham mais fácil se acomodar e criticar, esperando que os outros resolvam o problema, e não compreendem que cabe a todos conquistar o respeito e a valorização."

Para o dr. Menegasso, a discussão abre uma oportunidade imensa para o fortalecimento da profissão. "Temos certeza de que a solução do problema dos medicamentos de venda sob prescrição passa pela prescrição farmacêutica e acredito que parte expressiva da categoria está disposta e preparada para assumir essa responsabilidade. Se a Anvisa quiser mudar o cenário da dispensação no país, o CRF-SP, o CFF e outras instituições farmacêuticas têm muito a contribuir na construção de um novo modelo que tenha foco na saúde pública e na farmácia como estabelecimento de saúde".



 

VEJA QUAL O POSICIONAMENTO DO CRF-SP EM RELAÇÃO À DISPENSAÇÃO DEMEDICAMENTOS SUJEITOS À PRESCRIÇÃO MÉDICA NO BRASIL

O CRF-SP entende que algumas medidas são necessárias para melhorar o acesso aos medicamentos:

Controle de dispensação: o farmacêutico não pode ser transformado em um burocrata (Foto: Lilo Claretto / Agência Luz)
Controle de dispensação: o farmacêutico não pode ser transformado em um burocrata (Foto: Lilo Claretto / Agência Luz)

 • Revisar a RDC 138/03, para que haja reenquadramento de alguns medicamentos para a categoria "isento de prescrição";

 • Criar uma nova categoria de medicamentos, ou seja, medicamentos de venda sob prescrição/indicação do farmacêutico;

• Adotar um sistema de receituário eletrônico;

• Estabelecer regras claras sobre o prazo de validade das receitas médicas;

• Estabelecer prazo de validade diferenciado para prescrição de determinadas classes de medicamentos (ex: medicamentos de uso contínuo);

• Implantar efetivamente fiscalização sanitária padronizada em todos os municípios do país, de forma que todos os estabelecimentos sejam fiscalizados com o mesmo critério;

• Criar um cadastro nacional de usuário de determinados tipos de medicamentos de uso contínuo.

Todas as discussões sobre o problema devem contribuir para o uso racional de medicamentos, ou seja, para que os pacientes recebam os medicamentos apropriados a sua condição clínica, em doses adequadas às suas necessidades individuais, por um período de tempo adequado e ao menor custo possível para si e para a comunidade. (OMS, 1986).

O CRF-SP é contrário a qualquer regra que coloque toda a responsabilidade pelo controle da dispensação de medicamentos tarjados sobre o farmacêutico. A entidade é contrária à criação de normas que venham estabelecer novas obrigações aos profissionais, como, por exemplo, retenção de receitas. Esse tipo de imposição afasta o farmacêutico da sua principal atribuição no estabelecimento, que é a de prestar assistência ao usuário. O farmacêutico não pode ser transformado em um burocrata.

 

 

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